14 novembro, 2006

O mal que ele nos fez

Tudo começou com um boquete e agora termina numa debandada de canalhas. Começou com Monica Lewinsky e sua boca de onde saíram os males do mundo, como uma Pandora republicana. Al Gore hesitou em defender o Clinton na campanha contra Bush, com medo de ser chamado também de 'pecador' e Bush foi eleito, com sua gangue de fascistas. A partir daí, entramos numa ciranda de horrores.

Eu estava lá e vi. Os primeiros sinais de que a América ia mudar eu vi em 97/98. Eu vi na cara de Ken Starr, o procurador da República que tentou impichar o 'baby boomer' Clinton, que encarnava tudo que eles odiavam. Clinton era bonito, sorria demais, tocava sax, gostava de mulheres, pecava com delícia, foi contra o Vietnã e tinha uma visão ampla da liderança da América no mundo.

Clinton era sexy. Havia em torno dele uma euforia de astro, de ator de cinema. Clinton foi o Gorbachev de uma pretensa 'perestroika' americana e, do mesmo modo que o bom russo foi expelido pelo bêbedo do Yeltsin, tivemos o filhote do Bush invadindo o poder como uma doença. Clinton e Gorbachev eram sofisticados demais para um tempo de estupidez.

Ken Starr (lembram-se?), reacionário e puritano, boneca enrustida rancorosa, amava o Clinton pelo avesso. Quase o derrubou, por causa de sexo, enquanto Bush destruiu a imagem da América meticulosamente e ninguém falou em impeachment. Pode? A América não tolerou a imagem do presidente de calças arriadas no Salão Oval, de madrugada, mas agüentou até agora um chimpanzé político. Ken conseguiu o exame de DNA e Clinton foi flagrado em mentira. Seu calvário foi humilhante: ser apanhado pela esposa na cama já é um bode; imaginem pela nação inteira. Seu espermatozóide mudou a história.

Clinton resistiu ao impeachment, mas o estrago estava feito. O mundo piorou muito. Não surgiu nem Hitler nem Mussolini com seus dogmas psicóticos - apareceu a imbecilidade destrutiva. O mal não veio com lanças sangrentas , não veio com desígnios de extermínios por um milênio ariano; veio a burrice com poder de 40 mil bombas nucleares e 600 bilhões de dólares no orçamento militar, vieram as trapalhadas de Bush que não tinham a obstinação utópica e estética de um louco como Hitler, mas apenas as obsessões ridículas de um bando de psicopatas, sob a bênção de um 'Cristo de direita'.

O PORRE PARANÓICO

A globalização da economia e da política - inevitável com a mutação do capitalismo - trouxe uma convivência com o 'incontrolável', trouxe o fim de certezas, trouxe uma relativização de valores morais, sexuais, políticos, coisa insuportável para a grande massa da estupidez americana endêmica - paradoxalmente, o país que expandiu o turbo-capitalismo foi justamente o que mais detestou esta 'modernização'. A paranóia fundamental, atávica da América não suportou tanta democracia. A relativização de certezas exasperou o absolutismo fundamentalista cristão. Clinton - a última persistência dos anos 60 no poder tinha de ser banida. Os republicanos queriam de volta a época em que dominaram a América durante 30 anos, desde o presidente Mackinley (1897) até a Depressão dos anos 30. O filme-catástrofe do Osama no WTC só fortaleceu essa tendência. Nunca uma vitória foi tão completa como a de Osama. Veio na hora certa, de modo a devastar a democracia, revigorando Bush que cometeu todos os erros que Osama desejava, sendo, de certo modo, seu melhor lugar-tenente na desorganização do Ocidente. A vingança de Nixon chegara, 25 anos depois do Watergate, contra o filho dos direitos civis e de revolução sexual.

E tudo começou a andar para trás: acabou a época da esperança com a globalização liberal e surgiram os impasses insolúveis. Bush descobriu a guerra sem o contraponto soviético e resolveu assumir a unipolaridade, contrariando a frase do presidente Madison de que a 'América tinha de ser tolerante e se ver pelos olhos dos outros países'.

Agora, os 59 milhões de idiotas (como o The Guardian classificou os eleitores republicanos) estão se tocando, claro que com o atraso de cinco anos. Esvaiu-se grande parte do poder de Bush e seus mentores como Karl Rove, Rumsfeld, Wolfowitz, Perle, mas os despojos de seu governo ficaram espalhados no terreno destas batalhas absurdas: o Iraque destruído, com guerra civil para sempre, o terrorismo intocado e fortalecido com milhares de novos homens-bomba, a destruição da imagem da América como potência eficiente, o Ocidente em pânico e alvo de terror, a Coréia intocada e folgada, o Irã nas mãos de um 'Chávez' islâmico , o Paquistão balançando nas mãos do Musharraf, povoado por milhões de fundamentalistas, com bomba atômica, pronta para Osama, que deve estar na fronteira, guerra na Palestina com o Hamas eleito pela 'democracia' (há há...) a direita Israelense revigorada e brutal, moralismo, burrice e atraso, até o questionamento de Darwin e da evolução das espécies, o desalento da arte, da cultura e do pensamento filosófico , tudo ficará para sempre, pois as sarabulhadas que eles fizeram abriram veredas irreversíveis na cisão Oriente/Ocidente, um 'choque de civilizações' sim, que era evitável.

Que fazer agora? O pesadelo continuará, controlado talvez, mas gerando filhos abortivos para sempre. A pior estrada foi tomada, como um porre do texano fraco, incompetente e filho problema. É espantoso o mal que a estupidez de um homem pode provocar no planeta.

Acordamos de pesadelo, mas a estranheza do mundo continua.

Arnaldo Jabor, O estado de S. Paulo, 14 de novembro de 2006

2 comentários:

Anônimo disse...

Ponto positivo para o blog,Hazzamanazz!
A não ser os que enxergam o mundo por essa ótica hipócrita norte-americana é que não concordam com esse texto do Jabour.
É muito fácil condenar um tirano à forca, como Saddam Husein,e um outro tirano, George W. Bush,ficar impune! Bush é um criminoso igual ou pior do que Saddam,que não podemos esquecer que era vital para os interesses geopolíticos dos EUA no Oriente Médio quando da Guerra Fria...
Assim como Osama Bin Laden! Ora, quando os dois não atendiam mais aos interesses imperialistas norte-americanos, estes souberam o que fazer com eles...
Essa desastrosa política externa do Bush acabou por fortalecer, seguramente, uma nova geração de terroristas cujo combate a este tipo de ação a bandeira desse malfadado governo pôs-se a combater.
O texto é claríssimo e corro o risco de ficar reproduzindo as muito bem ditas (escritas) palavras do Arnaldo Jabour.
Um abração,Miguel.

Anônimo disse...

Can you please fix the link to New Machine? Thanks